CULTO E ENTRETENIMENTO…

NA SOCIEDADE DO ESPETÁCULO

Luiz Car­los Ramos


Vide­mus nunc per spe­cu­lum…
(1Co 13.12)


Para Freud, a sani­dade do indi­ví­duo está no con­fronto dosado entre o prin­cí­pio do pra­zer e o prin­cí­pio da rea­li­dade, entre­tanto, no mundo domi­nado pela ide­o­lo­gia do entre­te­ni­mento, promove-se um com­por­ta­mento pato­ló­gico decor­rente do hipe­res­tí­mulo do ele­mento “pra­zer”, em con­traste com a subli­ma­ção do refe­ren­cial da rea­li­dade. Por essa razão, con­quanto sejam vários os ele­men­tos con­ju­ga­dos que com­põem o atual qua­dro que con­forma a soci­e­dade do espe­tá­culo (tais como o sexo, a vio­lên­cia e o jogo), nesta abor­da­gem, nos limi­ta­re­mos àquele que lhe é mais notó­rio e cari­cato: o entretenimento.
Sim, o ele­mento que marca a per­su­a­são espe­ci­a­li­zada do dis­curso espe­ta­cu­lar é o Jogo, isto é, a diver­são, o lúdico, o brin­quedo, o pas­sa­tempo, o entre­te­ni­mento — e é mais fácil experimentá-lo do que explicá-lo. Ten­te­mos, assim mesmo, com­pre­en­der melhor o que é isso de que esta­mos falando (e, tão fre­quen­te­mente, usufruindo).
Em por­tu­guês, a pala­vra jogo tem ori­gem latina em jocus, gra­cejo, graça, pilhé­ria, mofa, escár­nio, zom­ba­ria. A rela­ção com o humor, o riso, o cômico fica evi­dente. Quanto à pala­vra diver­são, do latim diversìo,ónis, remete a “digres­são, diver­são”, do verbo divertère, afastar-se, apartar-se, ser dife­rente, diver­gir. Tal termo sugere um des­vio do cor­rente por meio do dis­tan­ci­a­mento, o que o liga ao con­ceito de ali­e­na­ção. A pala­vra lúdico, car­rega a idéia de sua eti­mo­lo­gia ludi­brium, que denota joguete, zom­ba­ria, insulto, ultraje, engodo e ludìus, que é o pan­to­mimo, o come­di­ante. Ao termo lúdico tam­bém se liga a brin­quedo, defi­nido como algo “que se faz por gosto, sem outro obje­tivo que o pró­prio pra­zer de fazê-lo”. A pala­vra brin­quedo inclui, ainda, o ele­mento de com­po­si­ção ante­po­si­tivo brinc-, ou vrinc- (vin­clu), que sig­ni­fica ligar, pren­der, amar­rar, atar, jun­tar, enfim, sugere a idéia de liame, laço, ata­dura, vín­culo. Sugere a idéia de algo a que alguém se liga por mero pra­zer. A expres­são pas­sa­tempo, por sua vez, sugere a ati­vi­dade que se faz por puro diver­ti­mento, para “matar o tempo”, como se diz popu­lar­mente, e tam­bém sugere uma digres­são, um des­vio, não somente do con­texto de espaço, suge­rido pela pala­vra diver­são, mas da pró­pria noção de tempo. Todos esses ter­mos estão con­cen­tra­dos de maneira muito par­ti­cu­lar na noção de entre­te­ni­mento que carac­te­riza a soci­e­dade espe­ta­cu­lar e, par­ti­cu­lar­mente, o uni­verso medi­ado (cf. HOUAIS, 2001).
Um estudo rele­vante sobre o entre­te­ni­mento na soci­e­dade moderna foi feito por Neal Gabler que, tomando a soci­e­dade esta­du­ni­dense como refe­rên­cia, pro­cura enten­der por que o entre­te­ni­mento se tor­nou o seu valor número “um”. Para esse autor,
de fato, Karl Marx e Joseph Schum­pe­ter pare­cem ter errado ambos. Não se trata de nenhum “ismo”, mas tal­vez o entre­te­ni­mento seja a força mais pode­rosa, insi­di­osa e ine­lu­tá­vel de nosso tempo — uma força tão esma­ga­dora que aca­bou pro­du­zindo uma metás­tase e virando a pró­pria vida (GABLER, 2000, p. 17).
Gabler pro­cura demons­trar o nexo exis­tente entre entre­te­ni­mento e sen­sa­ção. O ele­mento sen­só­rio do entre­te­ni­mento é tão cen­tral que está envo­lu­crado na pró­pria pala­vra. Como notou o autor, eti­mo­lo­gi­ca­mente, entre­te­ni­mento vem do latim inter (entre) e tenere (ter). Con­quanto se entenda entre­te­ni­mento como sendo “aquilo que diverte com dis­tra­ção ou recre­a­ção” ou “um espe­tá­culo público ou mos­tra des­ti­nada a inte­res­sar ou diver­tir”, na cons­ti­tui­ção mesma da pala­vra está pre­sente a idéia de “ter entre”. Isto é, os fil­mes (cinema), os musi­cais (shows), os roman­ces e as his­tó­rias em qua­dri­nhos (livros), as tele­no­ve­las (TV), os jogos ele­trô­ni­cos, para citar alguns, atraem os indi­ví­duos, “mantendo-os cati­vos” levando-os cada vez mais para den­tro de si mes­mos, de suas emo­ções e sen­ti­dos (nova­mente a idéia de espe­lho da rea­li­dade inte­rior do indivíduo).
Gabler sugere que com o entre­te­ni­mento se dê o oposto da arte. A idéia que se tinha era a de que a arte pro­pi­ci­ava o ecks­ta­sis  — cuja idéia é a de “dei­xar sair, colo­car para fora”; enquanto que “o entre­te­ni­mento em geral for­nece jus­ta­mente o oposto: inter tenere, puxando-nos para den­tro de nós mes­mos para nos negar a pers­pec­tiva” (GABLER, 2000, p. 25). Se a arte era diri­gida a uma pes­soa, o entre­te­ni­mento se volta ao maior número pos­sí­vel de pes­soas, isto é, lida com uma pla­téia nume­rosa que é con­si­de­rada como massa, “um con­junto de esta­tís­ti­cas” (GABLER, 2000, p. 26). Se a arte é con­ce­bida como inven­ção, o entre­te­ni­mento é tido como conven­ção, por­que “busca cons­tan­te­mente uma com­bi­na­ção de ele­men­tos que já des­per­ta­ram certa rea­ção no pas­sado, na supo­si­ção de que a mesma com­bi­na­ção pro­vo­cará mais ou menos a mesma ração de novo” (GABLER, 2000, p. 26).
As emo­ções e as sen­sa­ções são os fins do entre­te­ni­mento e isso ele obtém por­que se apre­senta “diver­tido, fácil, sen­sa­ci­o­nal, irra­ci­o­nal” (GABLER, 2000, p. 27). Manuel Cas­tells comenta o fato de que a expec­ta­ti­vas de demanda por entre­te­ni­mento “pare­cem ser exa­ge­ra­das e muito influ­en­ci­a­das pela ide­o­lo­gia da ‘soci­e­dade do lazer’” (CASTELLS, 1999, p. 390). Trata-se de um mundo onde os sen­ti­dos triun­fa­ram sobre a mente, a emo­ção sobre a razão, o caos sobre a ordem, o id sobre o supe­rego. A esté­tica do entre­te­ni­mento torna-se cada vez “maior, mais céle­bre, mais baru­lhenta, como se o desejo de uma sobre­carga sen­só­ria fosse, assim como o sexo, um impulso bio­ló­gico em estado bruto, difí­cil de resis­tir” (GABLER, 2000, p. 25).

Culto espe­ta­cu­lar

His­to­ri­ca­mente, a reli­gião ins­ti­tu­ci­o­na­li­zada opôs-se vee­men­te­mente ao entre­te­ni­mento, a exem­plo da pre­ga­ção de João Cri­sós­tomo (354 – 407) (cf. RAMOS, 2005, p. 48 – 50). E constata-se a freqüente repres­são e cen­sura reli­gi­osa que mar­cou a sepa­ra­ção entre o mundo secu­lar e a reli­gião tra­di­ci­o­nal, ao longo de toda a Idade Média, e que se dis­se­mi­nou prin­ci­pal­mente entre os pro­tes­tan­tes puri­ta­nos. Estes se nota­bi­li­za­ram pelas obje­ções às expres­sões popu­la­res “licen­ci­o­sas”, tais como dra­ma­ti­za­ções, can­ções, dan­ças, jogos e fes­tas sazo­nais.[1] Entre­tanto, em mea­dos do séc. XIX, teve iní­cio uma rup­tura com essa pos­tura his­tó­rica em rela­ção ao entre­te­ni­mento. Isso coin­ci­diu com o sur­gi­mento de um grande número de novas deno­mi­na­ções reli­gi­o­sas, que pas­sa­ram a dis­pu­tar os fiéis como os esta­be­le­ci­men­tos comer­ci­ais con­cor­ren­tes dis­pu­tam cli­en­tes. Segundo Gabler, a pro­li­fe­ra­ção de inú­me­ras deno­mi­na­ções reli­gi­o­sas dife­ren­tes, que rapi­da­mente se expan­diam e espa­lha­vam, nos Esta­dos Uni­dos do séc. XIX, “entre as quais se podia esco­lher livre­mente”, resul­tou em uma prá­tica reli­gi­osa que se tor­nou “tão alta­mente diver­tida que aca­bava por minar bas­tante as expres­sões obri­ga­tó­rias de des­dém diri­gi­das ao entre­te­ni­mento”. Referindo-se ao pro­tes­tan­tismo evan­gé­lico, Gabler afirma tratar-se de “uma reli­gião demo­crá­tica — alta­mente pes­soal e não hie­rár­quica, ver­ná­cula, expres­siva e entu­siás­tica” que “evi­tando a dou­trina e o come­di­mento” pre­fe­riu a emo­ção à teo­lo­gia. Isso por­que essa estra­té­gia fun­ci­o­nava melhor para atrair o público do que as tra­di­ci­o­nais pos­tu­ras puri­ta­nas. (cf. GABLER, 2000, p. 30).
A pro­fun­di­dade da fé passa a ser medida não pela plau­si­bi­li­dade teo­ló­gica dos seus pos­tu­la­dos, mas pela inten­si­dade da emo­ção sen­tida pelo indi­ví­duo que se aban­dona no fer­vor reli­gi­oso, expe­ri­men­tado no con­texto dos cul­tos. Em tais cul­tos, os fiéis são toma­dos por “ata­ques de cata­lep­sia, con­vul­sões, visões, aces­sos incon­tro­lá­veis de riso, súbi­tas explo­sões de can­to­ria e até mesmo de lati­dos [urros, gemi­dos, gru­nhi­dos, e todo tipo de afe­ta­ção]” (GABLER, 2000, p. 31). Essa prá­tica marca o maior movi­mento reli­gi­oso da atu­a­li­dade, não somente nos Esta­dos Uni­dos, mas em todo o con­ti­nente ame­ri­cano e em mui­tas outras regiões do pla­neta. Na cons­ta­ta­ção de Gabler, “ao rejei­tar uma reli­gião raci­o­nal em favor de uma reli­gião emo­ci­o­nal e imo­de­rada” os evan­gé­li­cos ter­mi­na­ram por disseminar-se “nas mes­mas filei­ras do entretenimento”.
Assim, a tea­tra­li­dade[2] começa a “insinuar-se nos ser­vi­ços reli­gi­o­sos” (GABLER, 2000, p. 32): ser­mões outrora mar­ca­dos pelo severo rigor teo­ló­gico dão lugar a ane­do­tas, his­to­re­tas, epi­só­dios engra­ça­dos e apar­tes colo­qui­ais; ritu­ais cir­cuns­pec­tos são subs­ti­tuí­dos por mani­fes­ta­ções extá­ti­cas, con­du­tas extra­va­gan­tes e exul­ta­ções jovi­ais — em grande sin­to­nia com a ascen­são da cul­tura popu­lar. Até o final do século XIX, a cul­tura popu­lar já se trans­for­mara na cul­tura domi­nante nos Esta­dos Uni­dos e, por essa razão, Gabler afirma que, “dali em diante” esta­ria decla­rada e pro­mul­gada a “a Repú­blica do Entre­te­ni­mento” (GABLER, 2000, p. 37), e esta, desde então, vem se expan­dindo por toda parte.
Em nos­sos dias, mais do que tudo, pode-se veri­fi­car o resul­tado disso tudo para o culto público, tanto das igre­jas de con­fis­são cristã como o das dife­ren­tes expres­sões e cul­tu­ras religiosas.
Pode­mos arris­car a seguinte cate­go­ri­za­ção: 1ª. gera­ção: cele­bran­tes midiá­ti­cos intui­ti­vos; 2ª. gera­ção: cele­bran­tes midiá­ti­cos tec­ni­cis­tas; e 3ª. gera­ção: cele­bran­tes midiá­ti­cos especialistas.
Esta­mos viven­ci­ando, ainda, o final da pri­meira gera­ção, a dos cele­bran­tes midiá­ti­cos intui­ti­vos. Sem for­ma­ção na área tec­no­ló­gica ou da comu­ni­ca­ção medi­ada, mas com espí­rito empre­en­de­dor e grande ini­ci­a­tiva, são os pio­nei­ros da tele-religião e con­quis­ta­ram lugar defi­ni­tivo na mídia.
Aos pou­cos, essa pri­meira gera­ção vai dando lugar aos seus suces­so­res, já melhor pre­pa­ra­dos tec­ni­ca­mente para o desem­pe­nho do seu papel de tele-celebrantes. Mas trata-se ainda de uma pre­sença muito tímida. Estes sabem que a mídia exige a subs­ti­tui­ção do dis­curso oral-verbal pela expres­são imagético-visual. Sabem que o meio exige uma dinâ­mica mais veloz e ágil, esforçam-se para des­co­brir cami­nhos. Mas saber “o quê” não é o mesmo que saber “o como”. De modo que o que temos ainda é a repro­du­ção das cerimô­nias reais nos meios de comunicação.
Tere­mos que aguar­dar a pró­xima gera­ção, a dos espe­ci­a­lis­tas, que com o know-how acu­mu­lado à custa dos erros e acer­tos das gera­ções ante­ri­o­res, pode­rão ama­du­re­cer a inter-relação entre a fé na mídia e a mídia na fé.
No momento pre­sente, lamen­ta­vel­mente, ainda temos mui­tos tele-celebrantes incom­pe­ten­tes (tanto téc­nica como teo­lo­gi­ca­mente falando). Alguém já disse que não há nada pior do que um incom­pe­tente com ini­ci­a­tiva e empre­en­de­do­rismo. Os estra­gos que cau­sam podem ser irreversíveis.
É pre­ciso, por­tanto, mais do que ini­ci­a­tiva e espí­rito empre­en­de­dor. É neces­sá­ria uma com­pe­tên­cia tec­no­te­o­ló­gica.
É notó­rio o des­pre­paro teo­ló­gico dos reli­gi­o­sos que estão em des­ta­que na mídia. Na área de Bíblia, percebe-se o quão super­fi­cial é o conhe­ci­mento demons­trado. O pro­ce­di­mento exe­gé­tico é tão raro que os pou­cos casos que even­tu­al­mente apa­re­çam são a exce­ção que con­firma a regra.
Em temos de teo­lo­gia, cris­to­lo­gia e pneu­ma­to­lo­gia dos tele-religiosos, a única coisa que é sis­te­má­tica é o des­prezo pelos teó­lo­gos e por suas ela­bo­ra­ções teo­ló­gi­cas. São rarís­si­mas as alu­sões aos gran­des teó­lo­gos, sejam os da atu­a­li­dade, sejam os da his­tó­ria da Igreja. Quando algum deles é men­ci­o­nado, é para depreciá-lo, e desautorizá-lo com pilhé­rias e gra­ce­jos humi­lhan­tes. No entanto, a teo­lo­gia midiá­tica está muito mais pró­xima da medi­e­val do que da refor­mada, pelo esva­zi­a­mento do con­ceito da Graça, e pela ênfase numa sote­ri­o­lo­gia meri­tó­ria, base­ada na teo­lo­gia da retribuição.
Pas­to­ral­mente, não há a pre­o­cu­pa­ção com a cri­a­ção de “comu­ni­dade”, e a soli­da­ri­e­dade não é vir­tude que mereça lugar de des­ta­que. A edu­ca­ção cristã tam­bém está em baixa, o estudo é deses­ti­mu­lado com base na falá­cia de que a razão milita con­tra a fé. A con­cep­ção do culto deixa clara a igno­rân­cia his­tó­rica da cami­nhada litúr­gica, homi­lé­tica e hino­ló­gica do cris­ti­a­nismo (a ina­ni­ção litúr­gica é como­vente!). A mis­si­o­lo­gia pre­sente na mídia pouco tem a ver com a implan­ta­ção dos valo­res do Reino de Deus, anun­ci­ado por Jesus de Nazaré, mas está pre­o­cu­pada muito mais com as van­ta­gens e benes­ses que se pode aufe­rir da reli­gião. A poi­mê­nica midiá­tica é gene­ra­lista e gene­ra­li­za­dora. Inca­paz de um aten­di­mento pes­soal e huma­ni­zado pau­tado pelo bom-senso, limita-se a ofe­re­cer ori­en­ta­ções ali­nha­das aos este­reó­ti­pos e às gene­ra­li­za­ções do senso-comum – que amiúde é pre­con­cei­tu­oso, dis­cri­mi­na­tó­rio, redu­ci­o­nista, sim­plista, e, a rigor, reflete a ide­o­lo­gia dominante.
Diante de tanta incom­pe­tên­cia, qual é o segredo então do “tre­mendo” sucesso dos astros e estre­las da fé?
Este espaço não nos per­mite apro­fun­dar a ques­tão como gos­ta­ría­mos, no entanto, quero aqui fazer algu­mas indi­ca­ções que podem nos ajudar:
Pra come­çar, deve­mos tomar em conta a estra­té­gia da mídia, que, para alcan­çar seus obje­ti­vos, recorre a ele­men­tos coer­se­du­to­res tais como o nar­ci­sismo, o meca­nismo de trans­fe­rên­cia, o fas­cí­nio das estre­las e os estereótipos.
Des­tes, gos­ta­ria de des­ta­car o fas­cí­nio das estre­las. “A estrela é arque­tí­pica” e fas­cina por­que se torna “a expres­são subli­mada das pró­prias cren­ças, das pró­prias neces­si­da­des” (FERRÉS, 1998, p. 113). A vene­ra­ção dos fãs pelas estre­las ou cele­bri­da­des nem sem­pre depende do talento des­tas e é comum que se dê mais impor­tân­cia às suas qua­li­da­des físi­cas do que à com­pe­tên­cia pro­fis­si­o­nal. No dizer de Neal Gabler, não é neces­sá­rio “haver talento algum para obtê-la [a fama]”, pois tudo de que pre­cisa é “a san­ti­fi­ca­ção da câmara de tele­vi­são” (GABLER, 2000, p. 179). Para Fer­rés, “a pes­soa que seduz, de certo modo, se apo­dera da alma do sedu­zido”, num ato de vam­pi­rismo espe­ta­cu­lar, pois o sedu­zido se entrega incon­di­ci­o­nal­mente recon­fi­gu­rando sua pró­pria per­so­na­li­dade segundo os mol­des da estrela, por asso­ci­a­ção ou trans­fe­rên­cia de tudo o que ela encarna — a moda ditada pelas cele­bri­da­des seria um claro indí­cio desse pro­cesso (FERRÉS, 1998, p. 120 – 121). No campo reli­gi­oso, essa ten­dên­cia mimé­tica, ou vam­pí­rica, tam­bém é notó­ria na repro­du­ção de tre­jei­tos, expres­sões, pos­tu­ras e con­vic­ções ide­o­ló­gi­cas tanto por parte da lide­rança clé­riga quando laica, dita­dos pela moda reli­gi­osa espe­ta­cu­lar. São as estre­las que deter­mi­nam o padrão de beleza física, de pos­tura moral, de esta­tura espi­ri­tual… A repro­du­ção desse com­por­ta­mento espe­ta­cu­lar se nota, inclu­sive, na vene­ra­ção pia a expo­en­tes (astros) reli­gi­o­sos por parte de fiéis (fãs) devo­tos. Acon­tece que, em grande parte, isso se dá de maneira des­per­ce­bida e desa­per­ce­bida. Não se trata de um pro­cesso cons­ci­ente por­que, como exem­pli­fi­cou Fer­rés, quando uma estrela parece ven­der lágri­mas, está ven­dendo sabão, e quando parece estar ven­dendo pro­du­tos, está ven­dendo valo­res (cf. 1998, p. 126 – 127).

Desa­fios pas­to­rais para o culto na idade mídia

Vide­mus nunc per spe­cu­lum in enig­mate
tunc autem facie ad faciem nunc cog­nosco ex parte
tunc autem cog­nos­cam sicut et cog­ni­tus sum
(1Co 13.12)
Retomo aqui os desa­fios que eu já havia apon­tado, anos antes, em rela­ção à homi­lé­tica, aplicando-os ao culto como um todo, e à reli­gião em geral, frente à soci­e­dade do espetáculo.
A reli­gião tra­di­ci­o­nal man­tém seu foco no sig­ni­fi­cado, ao passo que a espe­ta­cu­lar focaliza-se, sim, sobre o sig­ni­fi­cante ou sobre a forma da men­sa­gem enun­ci­ada. Entre­tanto, nem a con­ven­ci­o­nal, nem a espe­ta­cu­lar ajus­tam seu foco para cen­tra­li­zar os inter­su­jei­tos comu­ni­can­tes, isto é, nos seres huma­nos que estão inte­ra­gindo nesse pro­cesso comunicacional.
Tal­vez seja pos­sí­vel encon­trar alter­na­ti­vas para a tele-religião, mas essas só serão legí­ti­mas se con­se­guir­mos resis­tir à força desu­ma­ni­za­dora, robo­ti­za­dora, coisi­fi­cadora dos meios tec­no­ló­gi­cos, prin­ci­pal­mente os de comu­ni­ca­ção de massa. Está sobre a mesa a ques­tão da huma­ni­za­ção da mídia. Seria pos­sí­vel um pro­cesso de rever­são huma­ni­za­dora da ten­dên­cia coi­si­fi­ca­dora atual?
Será pos­sí­vel uma espi­ri­tu­a­li­dade medi­ada huma­ni­zada? Se de alguma forma isso for pos­sí­vel, só se dará medi­ante a inte­ra­ção de todas as pes­soas envol­vi­das como sujei­tos ati­vos que podem opi­nar e inter­fe­rir dire­ta­mente no curso do pro­cesso comu­ni­ca­tivo (tal inte­ra­ção deve ser pos­sí­vel entre as pes­soas e os meios, e entre as pró­prias pessoas) — não se trata mais de emis­so­res e recep­to­res de men­sa­gens, mas de inter­su­jei­tos comunicantes.
Será neces­sá­rio, ainda, por parte das igre­jas e dos fiéis, o enfren­ta­mento crí­tico e lúcido das “mega­mu­dan­ças”[3] que ocor­rem no campo teó­rico e tec­no­ló­gico con­tem­po­râ­neo, o que implica na aber­tura para aceitá-las e, até mesmo, para promovê-las, quando per­ce­bi­das como fer­ra­men­tas legí­ti­mas que podem estar a ser­viço de uma ação ética, razoá­vel e democrática.
Essa espi­ri­tu­a­li­dade deverá tam­bém se pre­o­cu­par com a sen­si­bi­li­za­ção ética de todo o corpo humano: suas dores e pra­ze­res, suas dúvi­das e inte­res­ses; tra­tar com res­peito e con­si­de­ra­ção a emo­ção e o sen­ti­mento humanos.
Nas rela­ções com a soci­e­dade tec­no­ló­gica, se deverá bus­car a supe­ra­ção das redes de máqui­nas (de com­pu­ta­do­res, de TVs, de emis­so­ras de rádio…) por uma rede de gente: pois não faz sen­tido haver máqui­nas conec­ta­das se não hou­ver inte­ra­ção entre as pes­soas que as uti­li­zam. Deve-se bus­car, por­tanto, a cons­ti­tui­ção, ainda que vir­tual, de uma comu­ni­dade real. Isso implica na domi­na­ção das máqui­nas pelas pes­soas e não das pes­soas pelas máqui­nas (a maneira de dom[in]ar as máqui­nas é apren­der a usá-las). Tam­bém os homi­le­tas, litur­gos e hinó­lo­gos, deve­rão engajar-se na “alfa­BI­Ti­za­ção”[4] tecnológica.
As comu­ni­da­des cele­bran­tes deve­rão ainda abrir-se às amplas pos­si­bi­li­da­des e esti­los inte­lec­tu­ais; engajar-se no desen­vol­vi­mento de uma inte­li­gên­cia cole­tiva (os resul­ta­dos da inte­li­gên­cia humana devem ser soci­a­li­za­dos para bene­fi­ciar a todos, bem como os pro­ble­mas podem ser resol­vi­dos cole­ti­va­mente, inclu­sive no âmbito da fé); e convencer-se de que sua mis­são, e sua tarefa espe­ci­fi­ca­mente comu­ni­ca­tiva, não se dão no iso­la­mento, antes, só é viá­vel se rea­li­zada cole­ti­va­mente na inter-relação, na multi-relação e mesmo na trans-relação entre sabe­res, com­pe­tên­cias e expe­ri­ên­cias tanto cog­ni­ti­vas como vitais.
Enfim, não será dese­já­vel uma única litur­gia, ou uma única homi­lé­tica, nem mesmo uma única hino­lo­gia, mas várias, inte­ra­gindo e inte­grando sabe­res e sabo­res, prosa e poe­sia, har­mo­nias e rit­mos, pala­vras e ima­gens… Ou então, como alter­na­tiva, se pode aspi­rar pela con­cep­ção de uma única liturgia-homilética-hinologia, mas com mui­tas faces: sen­sí­vel e poli­sen­so­rial, afe­tiva e comu­nal, dia­ló­gica e demo­crá­tica, multi e co-inteligente, inter-multi-transdisciplinar, huma­ni­zada e humanizante.
Não se deve esque­cer, por fim, que o acon­te­ci­mento cele­bra­tivo se dá sem­pre como pro­cesso de cons­tru­ção e recons­tru­ção memo­rial. Por­tanto, não seria demais repe­tir: o culto é, em parte, expec­ta­tiva e, em parte, memó­ria: é acon­te­ci­mento, é ins­tante, é alo­cu­ção, é atu­a­ção, é sta­tus pre­di­candi, é sedu­ção em anda­mento, é silên­cio em eloqüên­cia e som em per­su­a­são; enfim, o culto é(!). Nisso está o seu fas­cí­nio, seu encanto. Por um pouco é palavra/gesto esperado-desejado; num átimo, torna-se palavra-gesto encarnado-experimentado, para logo a seguir sub­mer­gir e res­sur­gir como memó­ria sagrada, pela magia da mis­te­ri­osa dança dos ges­tos sagra­dos e das pala­vras bem-ditas.

 Refe­rên­cia

CAMPOS, L. S. Tea­tro, tem­plo e mer­cado: orga­ni­za­ção e mar­ke­ting de um empre­en­di­mento neo­pen­te­cos­tal. Petró­po­lis: Vozes, 1997.
CASTELLS, M. A soci­e­dade em rede. Tra­du­ção de MAJER, R. V. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
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